segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Tide Hellmeister - O Álter Ego de Deus

Deus, em sete dias, criou o Universo e tudo o que existe nele. Tide, há 50 anos, recria essa obra divina todos os dias. Deus criou o homem à Sua semelhança. Tide o recria nas suas dessemelhanças, sob um olhar curioso que visita, respeitosamente, os mais profundos cantos da alma humana. Deus cria o real. Tide o surreal. Ao se completarem na invenção do mundo e de seus habitantes, na construção da arte de viver — ambos são indispensáveis. Quem acredita em Deus, não descrê de Tide. E vice-versa.

Por RICARDO VIVEIROS

    Nascido em 1942, na cidade de São Paulo, Aristides de Almeida Hellmeister, é mais uma dessas especiais criações de Deus. Um entre muitos, a cada novo século. Tide foi educado sob a aristocrática influência de uma neta da Baronesa de Jundiaí, cujos antepassados já haviam “adotado” também seu avô e seu pai. Desde menino sempre desenhou, embora sonhasse ser como o pai ao se tornar adulto. Tide sempre foi companheiro daquele homem raro, de hábitos refinados e antagônicos, a quem com ternura admirava. Afilhado do escritor Mário de Andrade, seu pai era capaz de ouvir ópera em alto volume, com a mesma naturalidade com que ficava bêbado no botequim da esquina. Cantor frustrado, funcionário burocrático da companhia telefônica, cedo se desencantou com a vida. Aliás, foi de tanto servir cachaça para seu pai que Tide, buscando entender razões que a própria razão desconhece, um dia resolveu experimentar um gole e despertou o alcoólatra que havia dentro de si.
    Enquanto bebia para esquecer o que jamais poderia lembrar-se, porque ainda nem realizara o suficiente, encontrou e perdeu oportunidades. Levado por um tio radialista conheceu o cenógrafo Cyro del Nero, com o qual começou na TV Excelsior. Fazia os letreiros para os intervalos comerciais e ajudava nos cenários. Criativo e ansioso não teve paciência para concluir um curso de desenho. Foi a colagem, também desenvolvida no Estúdio 13, do mesmo Cyro, que o apaixonou. Os primeiros trabalhos, que incluíam uma criança com um peixe saindo pela boca, foram considerados “monstros”, mas elogiados pelo pintor Wesley Duke Lee. Animado pela opinião do conhecido artista, seguiu produzindo colagens. Autodidata, fugiu do “Liceu Pasteur” ainda no Ensino Básico — no qual foi colega do médico e escritor Dráusio Varela e do pianista Antonio Carlos Martins —, o jovem Tide sempre foi uma pessoa sensível, elegante e curiosa.


CORAGEM & COLAGEM
   
    Quando descobriu a coragem e acreditou em si mesmo, saltou do pesadelo que vivia despertado por flores — e nunca mais bebeu uma só gota de álcool. Filho de Deus, Tide renasceu pela visão da felicidade, uma iniciativa divina. Afinal, Deus precisava de um “parceiro” que — com arte — o ajudasse a recriar o universo, as pessoas e a vida. Porém, precisava ser alguém simples, puro e capaz de olhar o próximo diferentemente de a si mesmo. Um ser humano maior, que houvesse redescoberto a alegria de viver e, com amor próprio, soubesse também amar todas as pessoas sem preconceitos. Salvo da armadilha do destino, Tide tornou-se o álter ego de Deus. E passou a trabalhar na reconstrução da vida, criando paisagens e personagens capazes de revelar outro mundo.
    Além da TV Excelsior e do Estúdio 13, o artista produziu inúmeros trabalhos para editoras (projetos de arte, capas e ilustrações de livros): a vanguardista Massao Ohno — responsável pelo lançamento de poetas brasileiros (na qual conquistou o Prêmio da Bienal Internacional do Livro do México, em 1964) —, Editora Brasiliense (toda a coleção de Graciliano Ramos), Companhia Editora Nacional, Melhoramentos, Círculo do Livro (onde foi diretor de Arte), Best-Seller e Abril Cultural (para as quais foi consultor de Arte). Tide também criou capas de discos para a RGE, Fermata, RCA Victor e Philips, tendo recebido, na Argentina, o prestigiado Prêmio “Leo”, como o “Melhor Capista” de 1966. No Jornalismo, foi diagramador, ilustrador e diretor de Arte em vários veículos: “Jornal da Tarde” (um dos mais bonitos projetos do gênero no Brasil, feito com Mino Carta), “Última Hora” (que inovou a linguagem à época), “Folha da Tarde”, “Gazeta Mercantil”, “O Globo” e “O Estado de S. Paulo” (nesses dois últimos, ilustrou os artigos do jornalista Paulo Francis). As revistas não ficaram de fora: “Roteiros de Viagem”, “Problemas Brasileiros” e, como diretor e consultor de Arte da Editora Abril, atuou nas principais publicações da empresa, de “Exame” à “Placar”.
    Tide ilustrou catálogos para importantes exposições de pintores, entre os quais Guignard, Rebollo, Penachi e, em razão desses trabalhos, conquistou o Prêmio de “Melhor Programador Visual” da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 1973. Por 11 anos foi diretor de Arte da Federação e do Centro do Comércio do Estado de São Paulo (incluindo o Sesc e o Senac). No campo da publicidade, produziu para agências e anunciantes como a DPZ Propaganda e o Banespa. Sua arte deu expressão a campanhas para a General Motors, Levi Strauss e Souza Cruz. A arte de Tide está registrada em quase uma dezena de livros, entre os quais ressaltamos “Inquieta Colagem”, da Infolio Editorial — o artista criou 200 capas diferentes, originais por ele assinados. Em 1987 montou seu próprio estúdio, “Collage”.
   

OS FILHOS DE DEUS

    Em suas viagens no Metrô, Tide observou os demais passageiros e criou uma espécie de retrato da alma para alguns deles. São “Os Filhos de Deus”. Cada um tem, além do rosto, feito à luz de um olhar pessoal do artista, também uma história: nome completo, data de nascimento, nacionalidade, profissão e morte. São dezenas de pessoas recriadas por esse “parceiro” de Deus, construídas com base em um imaginário surrealista, que ocupa instigantemente o espaço da tela com pintura à óleo e colagens. São trabalhos fantásticos, de grande criatividade e refinamento. Tide demonstra total domínio técnico da pintura: traços, volumes, cores e, em especial, luz, muita luz, como se cada personagem tivesse vida. Os elementos agregados valorizam cada obra, somando-lhes pedaços da história de todos nós.
    Tide — diferentemente de outros mestres da colagem, como Teresa D’Amico, Ubirajara Ribeiro, Sérgio Lima, Scliar ou, ainda, Matisse, Braque, Picasso, Jean Arp, Max Ernest, Robert Rauschenberg —, não é erudito, não teoriza a arte. É autodidata na profissão como foi na vida. Senta, olha o espaço e produz sem ter planejado nada. A obra nasce e cresce como a natureza, sem limites. Para Tide, cada trabalho é sempre o primeiro, e o cria despretensiosamente. Sua arte surge da insatisfação, é feita com certa preguiça em existir e por isso utiliza-se de sobras. Trabalha 18 horas diárias, em média. A arte é o que o mantém sóbrio e vivo. Sente-se útil ao deixar um legado à posteridade — mas, tenham certeza, sem nenhuma vaidade, sem acreditar que é um grande artista. Sua matéria-prima é apenas a emoção. Tide cria como quem acredita no futuro, a partir do sorriso de uma criança de rua. Sua arte nasce com a simplicidade da grandeza humana, plena de esperança. Por isso, é divina.


Ricardo Viveiros, em junho de 2008, para a Revista Abigraf.              

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